Anarcopunk SP — uma jornada de criatividade, resistência e luta

Eduardo Ribeiro
16 min readApr 14, 2019

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Capa do livro que acabo de publicar, pela Rizoma Editorial, sobre a história do Anarcopunk em São Paulo

A história do punk brasileiro sempre andou muito associada à geração que teve caminhos abertos pelas bandas imortalizadas no primeiro disco representante desta vertente do rock nacional, a coletânea Grito Suburbano (1982), um split com os paulistanos Inocentes, Cólera e Olho Seco. Apesar das letras ácidas de protesto, do som cru e do visual podrão, entre 1977 e 88 o punk no Brasil era praticamente uma adaptação do rock tradicional para a realidade dos subúrbios. O bairro que concentrava os primeiros adeptos do movimento era a Vila Carolina, situada entre a Freguesia do Ó e o Limão. De lá, saiu a primeira banda punk do país, o Restos de Nada. Numa onda meio inspirada no filme Warriors, que se deu até pela natural identificação daqueles jovens com a realidade mostrada no longa, rapidamente surgiu a primeira treta de gangues do estado, uma rixa entre os punks da Vila Carolina, que seriam os “playboys”, contra os do ABC paulista, autointitulados “a verdadeira classe trabalhadora”.

As brigas eram muito violentas, e se tornaram lendárias. Com o tempo, as gangues e as tretas entre elas foram se multiplicando cada vez mais, numa réplica bem parecida com o comportamento das gangues de jovens do underground dos Estados Unidos e da Inglaterra, pelo filtro da cultura pop. No meio desse contexto, brotavam ainda as primeiras gangues de carecas e de metaleiros, que também eram tensos e empreendiam embates nas ruas com os punks. Mesmo diante da escassez informativa da época, a primeira onda punk nacional não era totalmente apática do ponto de vista político. Já se falava de luta de classes nos fanzines, nas letras de bandas como Condutores de Cadáver (1978), AI-5 (1978), Restos de Nada (1977), Cólera (1979), Ratos de Porão (1981) e Garotos Podres (1982), e organizava-se alguns protestos. No entanto, era uma crítica social ainda muito embrionária e reduzida ao discurso panfletário.

Foi somente a partir da segunda geração do punk, ou seja, os anarcopunks, com suas experiências comunitárias, ativistas e organizacionais, que surgiu uma reciclagem da prática anarquista clássica no Brasil, e que evoluiu para uma real politização do punk. Por volta de 88, moicanos de São Paulo inteira já não suportavam mais as brigas entre gangues e aquela coisa do discurso panfletário reduzido à cena underground, o lance de pregar para os convertidos. Essa galera queria mais, queria inserção social e mudanças reais em sua qualidade de vida, que era precária. Aos poucos, indivíduos que demonstravam mais propensão à militância e à vontade de colocar em prática as sociabilidades libertárias começaram a se agrupar nos primeiros coletivos voltados à ação direta.

Daí o que começou como uma instintiva forma de protesto estética e comportamental, de repente se expandiu para uma complexa linguagem e um discurso que contribuiu para oxigenar o movimento anarquista brasileiro, que vinha de práticas engessadas do período pré-Ditadura recém-extinto (1964–85). Interessados no pensamento político radical, estes jovens furam buscar informação e formação com a velha guarda anarquista, militantes já idosos à frente do reaberto Centro de Cultura Social. O CCS, que mantinha atividades culturais de fomento ao pensamento anarquista, bem como um imenso arquivo audiovisual libertário, era ponto de encontro e estudos da velha guarda, formada por imigrantes libertários italianos e espanhóis. Fundado em 1933, permaneceu fechado durante a Ditadura Militar, e reabriu em 85, tão logo os militares foram depostos do poder. Os jovens que pouco depois formariam a vertente anarcopunk encontraram ali suas primeiras referências anarquistas, mas logo debandaram para a formação de seus próprios coletivos, por acharem ótimo o estudo dos princípios autônomos, mas sentirem falta da prática.

Foto: Arquivo pessoal Maria Helena

A primeira banda a se apresentar como “anarcopunk”, em 87, curiosamente, não era de São Paulo, mas de João Pessoa, no estado da Paraíba, e se chamava Disunidos. Mas foi mesmo na capital paulista que se deu origem ao primeiro coletivo que se assumiu enquanto MAP (Movimento Anarco-Punk). Não foi só do CCS que os punks debandaram para fazer um movimento específico que lhes representasse, mas também da chamada Confederação Operária Brasileira, bem no começo dos anos 90. Em busca de um anarquismo mais ativo, e influenciados por nomes como Jaime Cubero (1926–1998), então veterano anarquista integrante do CCS, começaram a multiplicar as primeiras células do Movimento Anarco-Punk voltada a causas específicas, como feminismo, antirracismo, direitos dos animais, ocupação/moradia digna, LGBT, permacultura e ecologia, e da Juventude Libertária, um coletivo que mais tarde daria origem ao straight edge no Brasil — mas esta já é uma outra história.

Punks ainda ligados à prática ganguista, como os grupos Devastação Punk, Kaos Punk, SP Punk e os Punks Carniça, assustados com o avanço das discussões dos anarcopunks já naquela época, acabaram iniciando uma forte perseguição aos anarcos, que também tinham que enfrentar os Carecas do ABC e do Subúrbio. Por levantarem bandeiras novas num meio embebido de preconceitos, os anarcopunks sofreram bastante. Alguns anarcos eram gays assumidos e iniciaram uma inédita campanha de conscientização anti-homofobia no hardcore. Os outros punks não viam isso com bons olhos, conta Maria Helena, que foi integrante do Coletivo Anarco-Feminista. “Eu até bati de frente com a Tina Ramos [Tina foi a primeira mina punk do Brasil], no festival USPcore, porque ela começou a falar umas coisas muito nada a ver”, diz. “Lembro que teve uma fala muito horrível lá no evento, dita pela Tina. Ela disse: ‘E essa palhaçada aí de vocês? Punk não é ser viado, não.’ Aí eu olhei e falei: ‘Punk é a gente ser o que quiser. E se um gay quiser ser punk, ele vai ser punk, muito mais do que você. Nós aqui estamos abertos pra tudo.’ Era uma homofobia horrível, sabe? Muitas vezes a gente falava que era ‘viado’ e ‘sapatão’ mesmo, tudo do que nos chamavam, para provocar.” Paulo Poela endossa o papo: “Tinha muito anarco que se beijava na boca nas gigs e encontros punks, na frente dos caras, mas era só pra provocar mesmo, não é que estavam namorando. E vários que se beijavam nem eram gays. Era só pra causar.”

Seu posicionamento pacifista, aos poucos, os colocou como um cenário à parte, e as tretas pro lado deles foram diminuindo. Entre as pautas dos anarcos que mais incomodaram os punks da primeira geração estavam o boicote a bandas comerciais de punk rock, que atuavam fora do esquema independente e da ética Do It Yourself, o amor livre, o feminismo e a vida comunal, seja em squats ou moradias compartilhadas. Os anarcopunks colocaram tudo isso em prática.

Então nasceram as editoras, selos, publicações e distribuidoras de material… Logo, os anarcos já faziam até suas próprias roupas, reinventavam seu visual, organizavam shows, manifestações, feiras, oficinas e palestras. Algumas das iniciativas pioneiras nesse sentido foram o ACR (Anarquistas Contra o Racismo), Coletivo Altruísta, Coletivo Anarco-Feminista e o KRAP (Koletivo de Resistência Anarco-Punk). A primeira publicação representante da postura anarcopunk foi o jornal O Iconoclasta.

O boletim Iconoclasta foi importante porque teve uma periodicidade regular, e durou vários anos. O Pandora, informativo do Coletivo Anarco-Feminista, foi importante porque iniciou essa coisa da discussão de gênero na cena punk. “Ele tinha uma tiragem grande, tanto que chegou a possuir até uma federação”, detalha Maria Helena, integrante do coletivo e da banda Ira dos Corvos. “Quem nos ajudou muito com teorias e nos deu incentivou bastante foi a Ulla Nilsen. Ela é uma americana lá de Minneapolis que fazia cinema na USP (Universidade de São Paulo).”

Show do Abuso Sonoro. Foto: arquivo pessoal Silvio Shina

“Nós a encontramos no evento do Outros 500, e ela contou que era anarcopunk na cidade dela. Por meio dela é que começamos a ter contato com o pessoal do Profane Existence. Pegamos os vinis que tínhamos de punk nacional, passamos pra ela, aí eles mandaram um monte de coisa pra gente. Nisso começamos a conhecer muita novidade, os anarcopunks clássicos mesmo, Rudimentary Peni e tudo mais.”

“Mas uma coisa legal é que não ficávamos presos só a som punk, tirando a galera crust, que quando veio aquela onda eles ficaram muito bitoladinhos”, critica Maria. “Tinha gente que ouvia Raul Seixas, Creedence Clearwater Revival. Lá na comuna da Bresser tocava de tudo. Tinha o Batata, que morava com a gente, e ele colocava Chico Buarque lá, e a gente ouvia. Já eu, colocava Kraftwerk, alguém mais botava Bauhaus, ouvia-se de tudo lá.”

Entre as bandas anarcopunks, podemos incluir o Pós-Guerra, Ira dos Corvos, Castitate Sociale, Vala Negra, Execradores, Metropolixo, Amor Protesto Y Ódio e Abuso Sonoro no rol das mais importantes. “Verdade seja dita, no final dos anos 80, início dos 90, nenhuma das bandas precursoras da cena punk no Brasil, entre as que ainda estavam na ativa, se diziam punks”, critica Marcolino Jeremias, integrante da União Libertária da Baixada Santista, coletivo do litoral paulistano. “Todas tinham um discurso mais ou menos parecido com ‘a gente começou no meio punk, mas hoje evoluímos e não queremos mais ser vinculados a nenhum rótulo’. É só pegar as entrevistas antigas de nomes como Ratos de Porão, Inocentes, Garotos Podres e outras, e constatar. Nenhuma delas se assumia punk. O punk era algo que havia feito parte de sua história, mas que ficara num passado distante.”

Havia muitas diferenças entre a primeira cena punk brasileira e a cena anarcopunk. A primeira, no próprio discurso. Enquanto as primeiras bandas punks tinham letras que diziam “Não, não, não me aceitam” (letra do som “Desemprego”, do Fogo Cruzado), as bandas anarco revelavam um papo do tipo “Precisamos de espaço pra mostrar nossa cultura. Invadir, reformar, tomar posse do lugar. Comunidades autonomistas, squats organizados, que buscam uma solução, solução ocupação” (letra de “Solução Ocupação”, do Execradores). Enquanto a primeira geração desdenhava do futuro em “Haverá Futuro?” (som do Olho Seco), herança direta da postura “blank generation” de nomes como Sex Pistols, os grupos anarcopunks afirmavam que havia futuro, então, “Por que morrer? Lute e sobreviva!” (trecho do som “Por Que Morrer?”, também do Execradores).

Mas as diferenças não estavam somente no discurso. Os anarcopunks assumiam explicitamente uma postura política, o anarquismo, e aos poucos foram aprendendo mais sobre o assunto, se aprofundando até se tornar, de fato, uma frente — embora ainda que contracultural — de atuação política. Lógico que esse caminho foi percorrido lentamente, entre muitos erros e alguns acertos. Enquanto os punks de outras bancas se reuniam para organizar os sons, fazer os zines e outras coisas mais relacionadas especificamente à cena underground, os coletivos anarcopunks, além de fazerem tudo isso, também procuravam atuar em parceria com diferentes coletivos anarquistas de forma federativa e tinham, de fato, um aspecto de célula política, ao ponto de até aceitarem como militantes, dentro de seus próprios coletivos, pessoas que não eram punks, mas que desenvolviam uma militância anarquista.

“Essa diferença entre a cena punk e a anarcopunk também se vê nos zines da época”, detalha Marcolino. “Num zine anarcopunk, se havia uma entrevista com uma banda e essa entrevista tinha, por exemplo, dez perguntas, com certeza oito delas remontavam a questões políticas dentro e fora da cena, enquanto apenas duas abordavam a história da banda, formação, próximas apresentações, lançamentos e demais questões musicais. E vários zines anarcopunks foram publicados somente com matérias políticas, textos políticos, sem falar nada de música, sem resenhas de som e, às vezes, até sem referência alguma à cena punk ou anarcopunk. A principal preocupação era o debate político. E isso se refletia também nas apresentações dos conjuntos anarcopunks, que, antes de tocar um som, faziam um discurso explicando a letra do som ou a ideia defendida.”

Foto: Arquivo pessoal Maria Helena

Um protesto que se tornou tradicional para os anarcopunks eram as manifestações no Centro da cidade chamadas de “Ciclo Antimilitarista”. Acontecia sempre no mês de agosto, como uma prévia do 7 de setembro. “O que eu ouvia da galera é que era tradição ser preso tentando zoar o desfile”, relembra Paulo Poeta, que foi baixista das clássicas bandas Metropolixo e Execradores. “Quando comecei a dar rolê de som, conheci um tipo de punk que já tinha essa pegada politizada, bem na época em que era muito grande o racha entre o anarcopunk e o restante. Punk de gangue mesmo conheci bem depois. Dá pra dizer que esse nome, ‘anarcopunk’, começou a ser usado na década de 90 mesmo, entre 90–91.”

Na discografia básica do anarcopunk brasileiro está a demo-tape Ideologicamente Perigosos (1994), com essas duas bandas das quais Paulo fez parte. O repertório foi lançado na França em split compacto cor de rosa. Na lista entra também as coletâneas Resistência Anarcopunk e Cenas Anarco-punks, e o compacto Revolucionar o Cotidiano, Cotidianizar a Revolução, do Execradores. Até aqui o som era bem na linha do punk/hardcore. Bandas mais tarde partiriam para um som bem crust/grind, como Abuso Sonoro, e outras, que vinham numa linha inspirada pela descoberta do Disrupt. Outra forte influência foram Sin Dios e Detestation. Foi quando o niilismo se instaurou em alguns círculos e ficou aquela oposição da punkapoeira ativista versus visão apocalíptica e distópica do futuro.

Isso gerou alguns desentendimentos entre o pessoal que morava numa comunidade chamada Casa da Esquina, na Vila Dalva, com a galera do KRAP, que vivia numa outra comuna, a Goulai Polé, na mesma rua. “Nessa época eles estavam numa pegada bem pesada, bem mórbida”, relata Paulo. “Tinha uma menina que morava com eles, a Luana, que se suicidou. O Estilou, outro anarco de lá, entrou numas de não tomar banho, ficou oito meses sem tomar banho. Rolavam umas tretas bem pesadas, um clima pesado. São Paulo pra eles foi ficando insustentável, e aí eles foram pra Florianópolis. Era atrapalhação da vida de gente que estava saindo da adolescência e que tinha que se virar. No meio das tretas políticas vinham as tretas de relacionamento, de não saber cuidar da própria vida, de não ter grana pra nada. No meio de tudo isso entra droga, bebedeira, falta de perspectiva mesmo. Esse pessoal, Max, Estilou, Naíra e outros, entraram numa pegada, usando o termo no pejorativo mesmo, e não no sentido real, niilista. Era muita negatividade. Se você quiser pegar o clima, ouça aquele compacto do Provocazione, a banda que eles tinham. É só abrir o encarte e ver aquele desenho. Bem bad.”

Keli de Fátima, militante anarcopunk que circulou pelas casas, também embarcou numas de niilismo. “Começou a ter alguns problemas entre a Goulai Polé e a Casa da Esquina, umas divergências de ações, de ideais”, esmiúça ela. “A galera da Casa da Esquina tinha um lado muito musical, tinha banda, organizava os gigs lá… O que se deu é que pixaram certa vez ‘Punk is Dead’ no muro da Casa da Esquina e eles não gostaram. E o pessoal era total crust, né meu, vida fodida, levando daquele jeito mesmo, encarando a realidade… aí começou a ter muito conflito, gerou várias brigas… Foi uma época sombria mesmo, triste, um vácuo, tanto que tem esse disco do Provocazione (Max — bateria, Naíra — baixo e Estilou — voz), chamado Culminando no Vácuo das Impossibilidades (Absurd Records, 2001).”

2004. Reunião da UMP. Foto: Arquivo pessoal Diego Divino Duenhas

“Ali na Casa da Esquina o pessoal era mais denso, mais metal. O pessoal também era vegan, e isso era bastante confrontado. Porque tentar resistir sendo vegano dentro dessa cena de não ter grana é foda… A gente reciclava alimentos da feira… Tinha uma feira lá de fim de semana que a gente ia nas bancas pegando tudo que já estava meio batidinho pra poder ter comida”, conta Keli. “A realidade era bem foda, e também porque a gente usava droga e queria beber, fazer outras coisas, mas não tinha dinheiro. Quando nos mudamos pra Floripa, tentamos viver em comunidade, eu, a Naíra, o Max, o Estilou. A gente plantava. Morávamos num lugar que era só sítio, foi lá que tivermos a experiência com cogumelo e outras drogas lisérgicas. Isso pegou muito pra esse negócio de desencanto. Porque quando começamos a tomar LSD surgiram muitos ‘por quês’ na cabeça, e começamos a desacreditar de algumas coisas, sabe? Via que tava foda, parecia que não tinha futuro mesmo, era uma vida muito à margem da sociedade. Amigas se prostituindo, o pessoal passando fome. Tinha que resistir ali, pra comprar um gás de cozinha era foda.”

Em 23 de setembro de 95, à ocasião de um show onde que tocaram as bandas Abuso Sonoro, No Violence, Personal Choice e Street Bulldogs, um careca, Marcelo Torres de Souza, de 21 anos, foi morto por um tiro. O evento era na Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec). Logo no caminho de entrada até o local da gig, já estava cheio de Carecas do Brasil e um baita clima de treta no ar. Os Carecas estavam lá para caçar anarcopunks. E os anarcopunks de São Paulo acabaram colando no evento. “Ali foi um ponto com o qual as pessoas não sabiam lidar. Uma pessoa morreu, ninguém sabia o que tinha acontecido, nem como, mas afetou todo mundo. Isso ocasionou um certo esvaziamento”, conta Josimas Ramos, guitarrista e vocalista do Execradores. “Por outro lado, o esvaziamento gerou uma coesão maior entre aqueles que já estavam construindo a história do anarcopunk há muito tempo”, afirma ele. “Passamos a discutir os questionamentos gerados a partir das coisas que aconteceram em busca de respostas. Nisso que começou a surgir uma nova organização anarcopunk.”

Nesse contraponto, existem heranças positivas nascidas do esforço de anarcopunks como o Ivan Ribeiro, que em 92, junto de outros militantes anarco, resolveram se organizar de modo federativo e criaram o Anarquistas Contra o Racismo (ACR) na cidade de São Paulo. O ACR teve núcleos em São Paulo, Baixada Santista, Rio de Janeiro, Curitiba e Criciúma, onde existe até hoje. O núcleo do projeto Anarquistas Contra o Racismo na Baixada Santista iniciou sua atuação no ano de 94, por iniciativa da ULBS, e foi muito importante pelo contato e pela parceria com diversos movimentos sociais. Os anarcopunks, no Brasil, foram os primeiros a divulgar e organizar campanhas pela liberdade do militante negro, ex-integrante dos Panteras Negra, Mumia Abu-Jamal. Outro feito notável foi a participação do MAP na organização da Primeira Parada Gay de São Paulo, hoje, Parada do Orgulho LGBT, em 96, na Avenida Paulista.

Chegou um momento em que até os punks de outras vertentes já estavam fartos da violência. Rolou, então, uma aproximação maior com o MAP e como resultado desse diálogo foram organizadas grandes reuniões punks no Parque do Ibirapuera, no vão do Trianon-Masp, Centro e outras localidades. “Os encontros da União do Movimento Punk rolavam quinzenalmente, juntando punks da cidade toda para troca de materiais, zines, contatos, informes e organização conjunta de atividades”, informa Marina Knup, da Imprensa Marginal. “A UMP também fazia um zine, organizava gigs, feiras de rua, panfletagens, colagens, grupos de estudo, teatro, atos de rua e outras coisas. Outra coisa que rolava e da qual participei foram os Encontros Regionais Anarcopunks de São Paulo, que aconteciam semestralmente e eram organizados por uma comissão rotativa de pessoas. Esses encontros reuniam anarcopunks da cidade e dos arredores, e debatíamos durante três dias sobre diversos temas ligados à realidade e movida local.” Foi num desses encontros que se decidiu reestruturar o MAP não enquanto movimento único, mas uma associação de grupos com lutas particulares.

Flyer da Comuna Goulai Polé

No início dos anos 2000, aconteceu o 1º Carnaval Revolução, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O festival durava dias e suas atrações ocupavam cômodos de uma mansão. Nessa época, o anarcopunk já tinha adeptos em nível nacional. “Foi uma das poucas viagens que pude fazer através do anarcopunk, e com ela pude conhecer vários amigos e amigas que só conhecia por carta”, emociona-se Silvio Shina ao relembrar. “Foram dias conversando sobre anarquismo, faça-você-mesmo, punk rock, movimentos sociais, arte e afins. Foram dias compartilhando quarto, cozinha, alimentos, ideias, dormitórios, banheiros, limpeza e política. Ali, na prática. Rolaram muitas oficinas como autodefesa pra mulheres, fanzines, permacultura, agroecologia e compostagem, além das manifestações que organizamos pela cidade e a ocupação de um McDonald’s.”

Logo depois, os anarcopunks atuaram na organização das manifestações contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e contra o NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), que mobilizaram muita gente, numa das primeiras grandes manifestações autônomas vistas em São Paulo, e que chegaram a levar 50 mil pessoas para a Avenida Paulista. Uma efervescência política antiglobalização abriu campo a novas ideias, como resultado dos debates que vinham lá do Encontro Internacional Anarco-Punk, que rolou no Uruguai em 98, junto com as ideias zapatistas. “O pessoal pirou muito nas ideias zapatistas, todo mundo achava que no século 21 ia ter a revolução”, comenta Johnny Revolta, do CCS Vila Dalva e da banda Revolta Popular.

Por influência do pensamento anarquista, os anarcopunks colaboraram na implementação da célula nacional do Centro de Mídia Independente, e as manifestações antiglobalização divulgadas pelo site tinham caráter horizontal, sem partidos liderando, sem carros de som e com muitas atividades acontecendo ao mesmo tempo, como teatro de rua, batucada, jogral, futebol, punkapoeira e um monte de coisas mais. Isso teve um impacto muito grande na cena punk e na militância estudantil como um todo. Uma herança organizacional e prática que se vê até hoje nos movimentos recentes do Passe Livre e Ocupações das Escolas. Os diferentes novos grupos começaram a cooperar mais entre si. Nesse momento também estava surgindo o Comitê Avante Zapatistas de São Paulo, em apoio e divulgação da luta e filosofia dos índios Zapatistas do México, que se reunia numa salinha da Rua do Carmo, na Sé, onde era sediado.

Hoje em dia a cena anarcopunk não está centralizada como em outras épocas, mas tem uma galera anarco Brasil afora envolvida em atividades com indígenas nas aldeias, causas periféricas e saraus nas quebradas, movimento negro e contra o extermínio da população negra e periférica, permacultura, lutas feministas e LGBTQIA+, movimentos de moradia, ocupações, experiências autônomas e coletivas, além de inúmeros projetos ligados a anarquismo, punk, cinema anarquista, editoras, distros, zines, bandas e outras iniciativas culturais e políticas. Alguns exemplos são o Cultive Resistência, que promove trabalhos de permacultura junto aos indígenas de Itanhaém, no litoral paulista, o Festival No Gods No Masters, o CCS da Vila Dalva, centro cultural dentro de uma casa ocupada, com arquivo libertário e atividades mensais, na periferia da cidade, e o Festival do Filme Anarquista e Punk, que em 2019 deve realizar a sua oitava edição anual.

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Eduardo Ribeiro

Editor @ Estadão Publishing House. Jornalista desde 2004, comecei no Grupo Estado. Passei pela MTV, Agora São Paulo, R7, VICE e Metro.