Lis MC e Scarlett Wolf: as minas que estão levando o rap underground a novos patamares

Eduardo Ribeiro
8 min readAug 20, 2023

Atitude, luta social, empoderamento e revolta marcam o trabalho das poetisas brasileiras

Revelação da Vila Cruzeiro, comunidade do Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio, Lis MC vem se destacando nos últimos tempos em razão de sua presença forte e, embora afirme ser tímida, não demorou a ganhar espaço no cenário do rap e no movimento hip-hop brasileiro. Com suas letras fortes e mensagens empoderadas, ela apresenta um modo autêntico de rimar sobre temas como feminismo, questões sociais e lutas por igualdade.

Estas são algumas das características mais perceptíveis de sons como “Fútil”, “Inimiga do Estado” e “Mãe da Fac”, canções que nascem de uma poética vinda da intimidade com os assuntos tratados. Lis MC também possui atuação no ativismo social, sendo envolvida com questões relacionadas à desigualdade de gênero, racismo e outras formas de opressão.

“Ainda quando eu morava na Vila Cruzeiro, na Penha, eu e meus amigos sempre nos reunimos à noite na praça pra passar um tempo juntos e sempre cantávamos também, pois alguns deles já estavam envolvidos com batalhas”, lembra ela como tudo começou. “Alguns dos meninos conheceram o Semente, um rapper que tinha ido morar na Penha e tinha um estúdio para gravar. Eles resolveram montar um coletivo e foi aí que todos nós entramos profissionalmente para a música.”

Ela conta que desde o início as mensagens das músicas geralmente não se repetem, tem sempre um novo assunto. “Eu tenho bastante dificuldade em criar composições de apenas um assunto”, explica a artista. “Geralmente, em cada verso eu tô falando sobre algo ou alguma ideia. Sou muito adepta ao rap de protesto, então tô sempre falando sobre o convívio social do ponto de vista de uma jovem mulher negra brasileira, com as minhas vivências. Também sempre trago a minha visão do que é luxo e prosperidade, e até amor, uma vez ou outra.”

VOLTA POR CIMA
Recentemente, ela lançou o single “Corrente”. Sobre a parceria com Will, de acordo com Lis, ela diz que o conheceu pelas redes sociais e que, mesmo antes de fazer rap, ela já conhecia o trabalho dele. “Daí, numa troca de ideias, resolvemos criar músicas juntos, afinal, por quê não? Percebemos que tínhamos uma ótima sincronia trabalhando juntos e o nosso primeiro single foi ‘Corrente’.”

A ideia de que este fosse seu primeiro lançamento de 2023 teve relação com a proposta de marcar o retorno após um período sem lançamentos. “Foi meu retorno à independência, e ‘Corrente’ fala justamente sobre isso, a ideia de que apesar de qualquer coisa ou pessoa que nos atrase ou prejudique, seguiremos fazendo arte, porque somos como correntes, estamos presos à arte e o karma de quem atrasa esse processo se torna a corrente que puxa de volta pra realidade pessoas que não entendem, que não podem atrasar a arte”, argumenta Lis MC. Mas a faixa foi planejada apenas como single. Ela afirma não ter o desejo de fazer um álbum no momento. “Imagino que não cheguei nesse momento ainda, então vale mais lançar singles bem trabalhados”, contextualiza.

CRIA DE FAVELA
Para ela, ser cria de favela com certeza traz uma visão de mundo muito diferente da perspectiva de pessoas que nunca passaram perto de uma comunidade. Nascer e crescer na favela trouxe um peso a mais no olhar dela. “Como todos sabem, mas fingem não saber, a favela é sempre mal vista e excluída, e os jovens, independente de qualquer coisa, são automaticamente marginalizados ou vistos como coitados e até incapazes. Ser de favela me ajuda a expor as mazelas sociais do ponto de vista de um jovem favelado”, diz.

A contribuição feminina no rap nacional vem desde os primórdios do movimento hip hop, porém, na opinião de Lis MC, “sempre foi pouco aplaudida, diferente da atuação masculina, que segue em grande destaque desde sempre. São poucas as que conseguiram e conseguem se destacar”. Apesar de pensar assim, ela acha que uma nova geração de mulheres do rap vêm sendo motivadas pela percepção de que o destaque precisa ser batalhado. “Ninguém vai nos dar o devido destaque se não entenderem que não precisamos ter grandes números para ter qualidade, então temos metido a mão na massa mais do que nunca para mostrar que qualidade não têm nada a ver com fama”, protesta, e destaca nomes que admira, como Afrodite Bxd, Natalhão, Lavínia e Clara Da Lua, entre tantas outras.

Atualmente, Lis MC vive de música, logo todas as demais atividades às quais se dedica são para o mesmo fim. Mas ela tem avançado bastante para a parte de produção, criando capas, planejamento das músicas, e até elaboração de releases e todos os materiais de marketing. Além disso, também encontra tempo para trabalhos como modelo fotográfica.

LIGAÇÃO COM A MÚSICA
Scarlett Santos, conhecida na cena como Scarlett Wolf, é carioca, da Zona Oeste do Rio, Santa Cruz. Atualmente, está casada com o rapper DaLua, e mora em São Paulo. A ligação dela com a música, relata, vem da infância. “Desde que nasci tenho uma ligação muito forte com a música. Minha mãe me diz que eu sempre fui muito musical. Mas o que mais consigo me lembrar é do meu padrinho ouvindo muito rock, pop e new wave, nos anos 90, e meu pai era DJ de hip hop.

Logo, Scarlett sempre escutou um pouco de tudo. Na infância, foi muito influenciada principalmente por Michael Jackson, Madonna e Cyndi Lauper. Muita gente pode se surpreender, mas ela, do pop, mergulhou no rock e no metal antes de chegar no rap. “Na adolescência, eu curtia muito rock, e vivi fielmente esse lifestyle”, assume, e conta um lance curioso: “Comecei de fato na música sendo vocalista de uma banda de rock, chamada DHUO9. Eu berrava e cantava. Ficamos uns anos juntos, fizemos grandes apresentações, abrimos o show do Sepultura no Espírito Santo. Aprendi muito com tudo, foi quando comecei a compor e a criar músicas.”

A razão para ter saído da banda, diz ela, teve a ver com falta de retorno financeiro, agravada pelas muitas cobranças da parte da família para trabalhar e tal. Logo na sequência, o clima pesou ainda mais, quando Scarlett se viu envolvida em um relacionamento que se tornou abusivo. “Fiquei dois anos nesse relacionamento”, desabafa, “e foi quando passei pela transição capilar, e nessa época eu escutava muito rap. Fui aprendendo muito sobre a cultura e sobre mim mesma. Foi quando comecei de fato a me entender como uma mulher negra. E ali tudo mudou pra mim.”

FALAR E APRENDER
“Aprendi muito sobre amor próprio também, na dor, mas aprendi.” Com estas palavras cheias de maturidade, Scarlett Wolf explica o significado de sua primeira música solo, “Pega a Visão”, de 2016. O som fala sobre esse relacionamento abusivo e a questão do empoderamento feminino. E foi a entrada impactante dela no rap. Os assuntos aos quais ela mais se dedica a escrever continuam tocando no empoderamento feminino. Com ênfase, ela incorpora questões espirituais e psicológicas.

Em suas palavras: “Sempre tive a ideia de que poderia mudar o mundo com as minhas letras. Sei que é ambicioso e ingênuo demais da minha parte pensar dessa forma, mas eu sempre quis escrever letras que tocassem, que fizessem pensar e que pudesse ajudar de alguma forma. E ao mesmo tempo busco aprender com aquilo que tento transmitir. Em uma música eu digo ‘eu canto liberdade pra me libertar’, e é tipo isso. Falar e aprender ao mesmo tempo.”

Com o tempo, as temáticas vêm se expandindo, há coisas do cotidiano, amor, diversão e sensualidade nos versos. Segundo ela, “para que possa explorar várias versões de mim e que mais pessoas possam se identificar também.” A vida se mistura muito com a arte nas criações de Scarlett. Por isso algumas de suas composições são produto de episódios de conflitos pessoais. “Eu tenho depressão e ansiedade, e sou uma pessoa que se auto sabota, e vira e mexe eu preciso reafirmar muitas coisas pra mim mesma pra lidar da melhor forma com essa condição”, discorre a cantora.

“Refém de Histórias” nasceu em um desses episódios. O próprio nome da faixa alude ao fato de que ela seria refém de si mesma. “Refém da minha própria mente. Refém de coisas que fui obrigada a ouvir sobre mim na infância. Refém de traumas e sequelas”, Scarlett abre o coração. “Nesse som eu pude contar com meu parceiro Knela (@knelasp) pra criar o instrumental, que foi inspirado em uma música da Card B. Eu queria que fosse algo que trouxesse um peso, e o Knela expressou perfeitamente o que eu buscava transmitir.”

“Refém de Histórias” está disponível nos streamings como single. Um tempo depois, a rapper lançou seu primeiro EP, chamado “WOLF”, que fala sobre quem ela é, de onde veio e a sua experiência vivendo e convivendo com a cena do rap e a indústria musical. Esse EP completou um ano recentemente, e o próximo play já está por vir. Ela adianta que será algo totalmente diferente do que já lançou até hoje.

NOVA FASE
Músicas diferentes para uma fase diferente. Agora, além de tudo, Scarlett Wolf se tornou mãe de uma linda menina que acaba de completar 1 aninho. “Tem sido uma experiência mágica e surreal”, comenta sob emoção, “porém muito cansativa e cheia de desafios também. Acaba que a maior parte das responsabilidades de um filho caem sobre a mãe. Mesmo com um pai que faça sua parte. Logo, tive que deixar algumas coisas pausadas para cuidar de outras. Aprendendo juntamente a reconciliar tudo e criar novas formas de execução.”

“Agora, vejo tudo de uma outra forma. Antes era só sobre mim, minhas realizações pessoais, meus objetivos e tudo isso muda quando você se torna responsável por uma vida”, reflete ela. “Eu acho muito satisfatório e de extrema importância ter mulheres nesse lugar, podendo se expressar como bem entenderem. Seja através da agressividade, da sensualidade ou da delicadeza. Acho que o que motiva, além do próprio gosto, é a revolta de termos que abrir as portas na marra.”

Quando perguntada sobre a transição do rock para o rap, Scarlett Wolf conclui que encontrou na cadência das batidas e rimas uma base condizente à sua forma de botar para fora a revolta: “Sou roqueira, sempre curti peso. Mas junto a isso tem, sim, a revolta. Se eles não dão, a gente toma, certo?” Ela aproveita para citar outras manas que andam representando com sensibilidade apurada essa revolta, figuras como Maryjane, Voigt, King, JujuRude, BIAB e Jô.

A música, embora fale mais alto, não é a única ocupação energética de Scarlett Wolf. Quem a acompanha nas redes logo nota sua paixão por moda e maquiagem. Formada em produção de moda, ela já fez alguns trabalhos como modelo fotográfica, e inclusive atuou por alguns anos como maquiadora. Em todo caso, acaba que tudo se junta e vira uma coisa só. “Eu que faço minhas próprias makes em clipes, shows… e consigo me expressar através das minhas roupas também”, observa a artista.

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Eduardo Ribeiro

Editor @ Estadão Publishing House. Jornalista desde 2004, comecei no Grupo Estado. Passei pela MTV, Agora São Paulo, R7, VICE e Metro.