O punk respira: In Venus

Eduardo Ribeiro
22 min readApr 1, 2021

“Sintoma”, novo álbum da banda post-punk, reage a uma época marcada por neuroses e distopias

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A recente safra de bandas punk, metal e garage/indie rock no Brasil protagonizadas por mulheres está tão promissora que decidimos fazer uma série especial a respeito. Dessa vez, contamos com a première exclusiva do aguardado segundo álbum da In Venus. Num departamento em que é preciso demonstrar aversão aos rótulos para não ser julgado, o conjunto surgiu carregando o descritivo de “post-punk” e jamais sofreu qualquer tiração. Por se tratar de um padrão estético bem amplo, onde cabem inúmeras experimentações, caiu como uma luva para o grupo.

Sintoma ainda remete à trilha do contexto histórico ao qual originalmente o termo se atribui, aquele momento logo após a explosão punk de 1977. Mas apenas vagamente. O que se encontra neste registro é, na verdade, uma expressão aventureira e artística, no sentido de se apresentar mais frequentemente complexa e ritmicamente diversa do que “Ruína”, o anterior. Agarram-se às músicas novas as climáticas soturnas, as marcações pungentes e a subversão das estruturas tradicionais do rock. Só que, agora, numa pegada “pistinha papo-reto”, como alude a baixista Patricia na entrevista a seguir.

Seja qual for a concepção de post-punk que se impregnou no senso comum, a In Venus está longe de um decalque daquela corrente que definiu os parâmetros radiofônicos nos anos 1980 para se tornar, enfim, um gênero de fácil reconhecimento. Refiro-me a um lance que transcende amarras criativas num tempo em que o punk/hardcore já foi transformado em ideologia comercializável, ruminado, digerido e regurgitado pela cultura de massa um punhado de vezes, e que, na permanente inquietude de estabelecer uma feroz crítica a si mesmo, renasce agora mais uma vez. Sintoma reage a uma época marcada por neuroses e distopias, atendo-se às últimas metamorfoses e convulsões da Sociedade do Espetáculo, em letra e forma, com apaixonada abordagem libertária.

Formada em São Paulo em 2015, atualmente a In Venus é composta por Cint Murphy (voz e teclado), Duda Jiu (bateria), Rodrigo Lima (guitarra) e Patricia Saltara (baixo). Na discografia, figuram dois singles, “Mother Nature” e “Youth Generation”, que precederam “Ruína”, lançado em 2017. Em 2018, saiu o EP . No ano seguinte, a banda se afastou dos palcos para entrar em processo de composição da obra que chega na presente data aos novos ouvidos. Sintoma vem com 10 músicas e, além de estar disponível nas plataformas digitais, rola uma versão em vinil de 180g pela No Gods No Masters.

Patricia: Olha, me cansa essas acusações e rixas musicais, tem gente que gosta de perder tempo com tretinhas como essa, falar que o rock morreu, que o funk não é música. Existe na sociedade uma vasta pluralidade e subjetividade humana, diferentes contextos e expressões culturais, a música não é para ser competição, sabe? Quem é de verdade, o que é cultura ou não… não me incomoda existir música que é apenas entretenimento, o caos pede esse respiro.

Temos que combater as injustiças, os preconceitos, as violências, isso sim me interessa, e qualquer tipo de música pode expressar essas violências, seja indireta ou diretamente. E aí eu posso criticar, deixar de ouvir, mas generalizar não comporta a pluralidade inclusive em cada subdivisão de expressão cultural.

A In Venus faz um som para expressar justamente nosso descontentamento e análise do mundo, para apontar falhas e soluções, e fazemos isso primeiramente por nós, como um grande desabafo, para então fazer pelo todo. Além de nós, existem muitas bandas de todo o tipo de música fazendo algo semelhante, e isso nunca parou, bandas se expressando de forma criativa e política, se posicionando no mundo de forma sonora e descritiva. E enquanto o mundo for mundo e existir algo a ser criticado, e algo a ser sublimado por meio da música, isso sempre vai existir e resistir.

Rodrigo: Acho que tem bastante gente reaça fazendo rock, punk, metal etc… Entendo que o rock não é um lugar esterilizado e esterilizante quanto ao reacionarismo, é só mais uma escala social que reflete a sociedade que a gente vive. Porém, acho que sempre existiu e vai continuar existindo a galera que vivencia o punk na sua essência, tanto no posicionamento político que visa a própria desconstrução quanto as estruturas sociais reacionárias que vivemos quanto na criação de ferramentas para que o seu redor discuta e se modifique, e isso não de uma forma a olhar para o seu próprio umbigo, fechado só no que se entendia de rock ou punk no final dos anos 1970, mas vivenciando o que tá rolando hoje, tanto nas formas nas discussões sobre gênero, raça e classe quanto também tentando entender dinâmicas para se trabalhar essa desconstrução. E sobre os estímulos a seguir na contracorrente, tenho pensado hoje, que parte de um ponto de entender o seu lugar no mundo, olhar para os locais e situações que você se identifica e que identificam você, as lutas e processos que ocorreram ali, perceber que existe uma estrutura social que tenta estratificar tudo e todos e daí penso que isso, de alguma forma bem grande, tem acarretado também no som que estamos fazendo.

Duda Jiu: Entendo a revolta quando se pensa no punk rock como música para contestar uma sociedade versus a música de entretenimento, todavia, mesmo diversas vozes que contestam o macro podem vir a cometer falhas no micro. Com isso digo que não há uma verdade absoluta de que música que é música tem de ser apenas para contestar politicamente aquilo que nos aflige. Existe muita contestação no entretenimento, muita gente boa por trás das criações. Não sinto que caiba a nós apontar. E negativamente falando sobre reaças, e etc… não temos garantia de nada, infelizmente nenhuma bandeira garante segurança extrema para as diferentes formas de organização social.

Sinto que as escolhas desses signos: punk, rock, guitarra, baixo, bateria, synth, voz, textura, camadas… elas extrapolam as linguagens, elas são expressões livres, musicais, visuais, fotográficas, daquilo que decidimos falar na nossa arte e isso nos devolve liberdade e possibilidades outras.

Tem sido comum, desde que vocês surgiram, a associação a uma nova geração de bandas da “cena rrriot”. Vocês se consideram parte de algo como tal?
Cint: Sim e não. Durante muito tempo tentamos achar rótulos para o tipo de som e onde nos encaixamos, mas hoje em dia, embora estejamos inseridos num contexto em que a parte das bandas se classificam assim, não necessariamente somos uma banda riot. Só o post punk já é um rótulo grande, e mesmo nele não nos sentimos tão contemplades. A gente brinca que estamos fazendo um som pixtinha (para dançar no escuro descendo na parede [risos]).

Patricia: Eu acho que a identidade riot grrrl se perdeu um pouco na atualidade, no sentido que daí tudo que é banda de mina de rock com mensagem política colocam nessa categoria, e isso é um reflexo machista da sociedade, onde ainda existe a separação entre “banda” x “banda de mina”, sendo que o primeiro é previamente entendido como banda composta por homens. A norma é sempre absorvida sem precisar descrição, enquanto a sociedade exige do desvio à norma uma descrição. Para combatermos isso, em certas ocasiões da caminhada em determinada luta, penso que devemos deixar de lado essas descrições, e enquanto o riot grrrl foi um movimento extremamente importante e de reconhecimento identitário em determinada época o qual eu participei ativamente, não devemos colocar tudo no mesmo balaio agora, em pleno 2021, porque isso seria continuar assumindo que existe uma norma a priori.

É muito complicado definir o próprio som, sempre foi uma questão, pois nesse novo disco nos dedicamos a extrapolar a sonoridade mais próxima da nossa identificação, que é o post-punk. Então, como a Cint falou, decidimos criar nosso próprio jargão para comunicar nosso estilo, que é a pistinha papo-reto. [risos]

Rodrigo: Acho que nosso corre tem algumas características parecidas com o rolê rrriot, mas particularmente acho difícil se colocar “dentro” mesmo de algo, sendo que a gente olha para vários lados para tentar fazer as nossas coisas.

Duda Jiu: A gente pertence ao rrriot assim como pertencemos ao free jazz, não só no sentido sonoro, mas é importante entender os contextos e onde essas cenas surgiram. O mais importante de tudo é entender que a cultura é sempre viva e que tudo se transforma. Eu não sei se somos 100% Riot, mas sei que bebemos dessa fonte porque, enquanto pessoas, pertencemos a esse lugar também, mas não só. Assim como o punk. Cada um de nós aqui na banda tem vivências diversas dentro e fora do contexto urbano, então prefiro acreditar que somos múltiples.

Quais são os temas e sonoridades que se convergem e se diferem, ou, que se complementam, entre os álbuns “Ruína” e “Sintoma”?
Cint: A sonoridade de Sintoma é bem mais rítmica do que a do Ruína, o que converge são os pensamentos por trás de ambos os discos. Os pensamentos evoluíram bastante, a gente não pensa e não age mais como quando Ruína foi lançado, mas a essência dos nossos pensamentos continua aqui. E a entrada de Jiu na banda trouxe outros experimentos sonoros, que nos levou para um ritmo mais pixtinha, que eu citei anteriormente.

Rodrigo: Na questão da estética sonora, acho que no Ruína a gente olhou mais para fora para entender o que havia dentro do que queríamos produzir e, no Sintoma, sinto que foi meio que ao contrário, a gente olhou mais para dentro para entender como a gente colocaria para fora. De diferente, o Sintoma é mais direto e mais agudo — não no espectro das frequências sonoras, mas na forma como os elementos apontam para um mesmo lugar. Na minha experiência como guitarrista, a entrada de Jiu na banda me trouxe outros olhares para o meu próprio instrumento, e acho que isso refletiu também em Cint e Vinhas. De complementar, acho que além das estruturas musicais, eu vou de encontro com o pensamento da Cint, sobre os pensamentos por trás de ambos os discos.

Duda Jiu: Só posso falar de Ruína como fã que sou. Um álbum sonoramente denso e delicioso, com camadas sonoras feitas para você pairar naquele espectro sonoro. Um dos meus álbuns preferidos. Sintoma foi feito para dançar com raiva, a poesia dele está nas escolhas divergentes que fizemos. A gente quis soar diferente de antes, Cint entrou na fase “pouca ideia”, a gente queria bater de frente, gritar todo o caos que havia dentro de cada um de nós. Com isso, sinto que In Venus ainda é denso, mas é mais rítmico e isso já propõe outra forma de escuta.

Sendo a In Venus uma banda declaradamente anticapitalista, o que vocês enxergam como alternativa para uma sociedade idealmente gerida, organizada?
Cint: Nós criamos um manifesto para o Sintoma, onde a gente conta um pouco sobre as alternativas que encontramos para, de certa forma, nos livrarmos de algumas amarras do sistema. Infelizmente, se livrar de tudo agora é impossível. Tem um exemplo que eu gosto de usar sobre essa impossibilidade que é o petróleo. Hoje, se houvesse uma possibilidade de migração energética, seria impossível cambiar de fonte energética por completo, porque até mesmo para essa migração o petróleo seria necessário, e por muitos anos ainda, alguns itens cotidianos dependentes dessa fonte. Eu vejo o sistema todo dessa forma, não adianta tentar resolver o problema, mas sim mitigar as consequências das escolhas erradas que o sistema capitalista faz com que tenhamos. No manifesto, a gente cita um pouco como a gente acredita que podemos ter uma sociedade igualitária e melhor organizada: “Reconhecer e abrir mão de privilégios, consumir menos e melhor, compartilhar o que se tem, utilizar tecnologias de forma lúcida, ser empático às diferenças, respeitar a natureza, ter autodeterminação, atender às próprias demandas, buscar por relações de confiança, canalizar a revolta, libertar os desejos e entender-se como indivíduo participante do todo são estratégias para dar fim ao controle, à hierarquia, às fronteiras, às representações estéticas, aos líderes, aos governos, ao lucro e à propriedade. Cuidemos de nós coletivamente. Finais felizes não existem se não for para todes.”

Patricia: Complemento aqui que eu acho que as pessoas precisam começar a prestar atenção no micro primeiro, este que atingirá o macro consequentemente. É a reformulação de nossas pequenas atitudes e formas como lidamos com nossa vida cotidiana, e o planeta como consequência. Isso exige autoconhecimento além de conhecimento político. E o capitalismo interfere muito nesse processo. Então cada pessoa deve encontrar uma forma de reduzir sua atuação dentro do capitalismo para ter tempo para refletir em quais mudanças ela pode e quer fazer para colaborar com um mundo menos violento e destrutivo.

Duda Jiu: Nosso micro precisa ser mais ativo em vários aspectos. A gente precisa distribuir melhor nossa própria renda. Lógico que estou considerando as escalas de privilégio, mas é exatamente disso que estou falando. Pensando na vida dentro do contexto urbano, por exemplo, quais são os serviços que você contrata? Onde você come? Onde você veste? Quais são as ongs que você dá suporte? Quais coletivos você está envolvido? Quais cursos você financia para pessoas que têm menos acesso cultural? Enfim, esses são alguns pontos que identifiquei dentro da minha própria trajetória. Sempre tive muito apoio das pessoas para poder estudar, comer, viver, conhecer lugares novos… e sei o quanto isso muda completamente a estrutura de uma pessoa. Hoje o que posso fazer é propor o mesmo para minha rede e para as pessoas ao meu redor, sempre que posso, da forma que posso, compartilhando tudo o que é possível, para minimizar a escassez de acesso.

Patricia: Bom, eu fui ateia a minha vida inteira, filha de um pai 100% ateu que detesta todo tipo de religião [risos] então sempre fui muito crítica e sempre busquei apenas o caminho da razão para satisfazer todas as minhas questões existenciais. Em algum momento, isso não bastou mais. Então eu tomei ayahuasca, e comecei aos poucos a me abrir para a espiritualidade. Agora, estudando psicanálise e a importância dos símbolos, vejo o porquê todo esse despertar funcionou muito para que eu fizesse mudanças radicais no sentido do autocuidado e do meu relacionamento comigo mesma, e consequentemente com tudo à minha volta. Estudo ciência psicodélica também, o que abrange muito esse encontro da ciência com a espiritualidade.

Eu vejo a espiritualidade como um mundo inconsciente simbólico, mas não só isso, vejo como uma consciência única viva que podemos acessar seja espontaneamente, ritualisticamente ou com psicodélicos. Também criei respeito em relação aos mistérios da vida e de todos os seres vivos que existem, ou seja, não reduzi mais meu interesse apenas no que o modelo de ciência atual pode explicar. Gosto muito de estudar sobre xamanismo e as práticas dos povos originários, acho que têm muito a ensinar, havia uma conexão com a natureza e os animais que perdemos hoje em dia.

Então, para finalizar respondendo diretamente sua pergunta, não acredito nesse deus que é protetor e ao mesmo tempo punitivo criado para substituir a figura arquetípica do pai. Eu acredito que a vida começou de alguma forma, com alguma partícula ou molécula, e que de certas reações foram criando-se mais, e surgindo aí todo tipo de vida, mas que todos descendemos dessa fonte criativa primordial (já foi provado que temos parentescos com as estrelas, não?), e que tudo está ligado por essa energia cósmica criativa, pois todos descendemos dela. Essa consciência cósmica está por aí e como disse antes, há formas de acessá-la, mas o estilo de vida urbano e capitalista nos afasta cada vez mais da capacidade que temos de sentir e acessar essas experiências transpessoais. E essa espiritualidade pode ser libertária no sentido de que vamos nos conectar mais com a natureza e todos os seres vivos, e com isso podemos mudar atitudes destrutivas que desprezavam suas consequências em relação ao todo. Entendemos que somos todos interconectados e então valorizamos mais todo tipo de vida. A própria covid mostra como uma pequena atitude pode causar tanta morte e destruição no mundo inteiro. Então se for uma espiritualidade que não aprisiona em dogmas, mas liberta e ensina, acho que pode ser libertária, pois as mudanças internas que vão ocorrer automaticamente refletirão no mundo.

Rodrigo: Esse Deus barbudo aí, da Europa e pá, eu não acredito não. Mas quanto a espiritualidade, por mais que eu particularmente não consiga experienciá-la dentro deste contexto das religiosidades (às vezes tenho uns caminhos meio malucos com a música no aspecto sensorial, que de alguma forma, pra mim, se assemelha com algo voltado para a espiritualidade), confio e acredito em várias amigas, amigues e amigos que vivenciam ela. Acredito que a espiritualidade tem uma potência política muito grande também, não só na escala da política institucional, mas na quebra de estruturas deterministas de tempo, espaço e de convivência.

Duda Jiu: Eu creio nos povos originários e no conhecimento das linhas da vida que aprendo com eles. Mas há um pano de fundo cultural que sempre tenta personificar essa divindade que tem conhecimento absoluto das nossas vidas e que comanda tudo, de alguma forma, de algum lugar. E isso é bem contraditório, bem antiautonomia. Libertação espiritual para mim é não ter que ver o outro sofrer por ter menos, menos direito, menos possibilidade, menos amor. Nossa nação é construída em cima de cemitérios de outros povos, não há um Deus aqui.

Patricia: Acho que Cint sintetizou bem, somos a favor da liberdade sem violência, e a maior ref é o respeito e a possibilidade de uma vida mais digna para todes!

Rodrigo: O que a Cint respondeu representa bastante das coisas que estamos envoltes.

Duda Jiu: Falar dos nossos desejos ideológicos é falar de utopia, né? Dentro do contexto urbano o que a gente deseja é que todes possam morar, comer, vestir, ser respeitade pela sua existência. No contexto anticidade, queremos que todes sejam livres de agrotóxicos, de crueldade animal, de prédios, empregos que tiram a maior parte da nossa energia vital, de mercadorias. Uma das referências que consigo citar atualmente é a Roça Punk. Um ideal sonhado e idealizado por pessoas da nossa rede, do nosso coletivo. Pessoas que deixaram a cidade e foram morar na terra, plantar, viver de forma desacelerada. A gente não tem muitos modelos de sucesso como referência, a gente tenta é inventar outras vidas dentro dessa prisão predestinada à qual viemos a calhar.

Patricia: Desde adolescente, rolou uma intuição — que a música seria uma forma de me expressar e de viver minha liberdade e verdade, longe dos padrões impostos pela sociedade na época. Então mesmo antes de aprender um instrumento, já formei minha primeira banda lá no final dos anos 90, que se chamava Baby Scream e era a vocalista. Enquanto nessa banda, comecei a aprender a tocar guitarra de forma autodidata mesmo, e nessa fase de aprendizado toquei numa banda chamada Falcatrua, onde eu e as outras integrantes aprendemos juntas a tocar cada uma seu instrumento. Depois de aprender, cada uma seguiu seu caminho, e eu montei duas bandas tocando guitarra/vocal, a Wee e a Hidra. Tocamos muito em todos os rolês e participamos ativamente da cena riot grrrl da época. Eu tinha muita vontade de tocar bateria também, então aproveitei essa imersão no mundo da música e me aventurei na bateria, e aí formou-se o The Dealers. Wee e Hidra encerraram suas atividades e eu toquei guitarra na Las Dirces. Depois me mudei para Londres, e lá demorou para eu começar a tocar, mas rolaram muitos ensaios e alguns shows com uma banda chamada Los Sugar Skulls em que eu tocava bateria. Também rolaram uns shows com o The Dealers, foram me visitar duas vezes lá e aproveitamos e fizemos alguns shows em Londres, e em outros lugares da Europa. No final estava tocando com uma banda de São Paulo que estava morando em Londres e eu curtia muito, chamada Money, mas tive que voltar, fizemos poucos shows por lá. Essas foram as últimas bandas em que toquei bateria. Voltando para São Paulo em 2012, rolaram muitas tretas pessoais e demorei muito para voltar a tocar novamente. Foi então em 2017 que a Cint me mandou mensagem perguntando se eu conhecia alguém que tocava baixo para entrar na In Venus, que estava em fase de lançamento do disco “Ruína”, e apesar de nunca ter tocado baixo antes, eu me ofereci [risos]. E foi muito maravilhoso e sou muito grata a esse encontro até hoje. Logo depois, a Carol que tocava no Hidra comigo voltou pra SP também, e decidimos montar uma banda chamada Weedra, com Mari Crestani, que tocou guitarra comigo no Wee, agora na bateria.

Rodrigo: Vixi, é doido para mim falar sobre isso [risos]. Meu rolê com a música começa na quebrada que eu nasci e vivi a maior parte da minha vida. Vila Souza na ZN paulistana. Onde eu frequentei na minha pré-adolescência uma dessas igrejas evangélicas de bairro e lá eu tive a minha primeira banda e colei nos primeiros rolês para tocar. Mas lembro dessa mesma época na escola a galera punk falando sobre outros rolês na região e como era feita a organização de maneira autônoma, pegando equipamentos emprestados de uma par de gente pra conseguir fazer acontecer, a galera do rap correndo para lá e pá cá, o sambão e o pagode comendo solto. Acho que todo esse cruzamento de manifestações musicais, por mais que eu não estivesse participando ativamente deles, me trouxe até aqui. Aí, depois, já descrente, com uns 19 anos eu entrei numa banda chamada The Cleaners, com amigos de Rio Grande da Serra e de Mauá e foi nesse contexto que rodei um pouco mais. Posteriormente criei uma banda chamada Blear e cheguei até aqui com a In Venus, e daí queria ressaltar a importância de várias e várias questões que eu aprendi e continuo aprendendo a partir do meu relacionamento com a Cint. Desde entender a minha (e nossa) produção musical num contexto político e com eventual possibilidade de transformação crítica e social, até olhar para mim mesmo e entender o que eu na minha particularidade e nas minhas trocas interpessoais represento politicamente.

Duda Jiu: Vamos voltar lá para a minha adolescência no interior de São Paulo. Com quinze ganho minha primeira guitarra, com dezesseis entro para uma banda cover com uns moleques da minha rua, logo nos primeiros ensaios descubro meu interesse pela bateria. Compro a bateria, saio da banda, monto uma banda só de mina para fazer som próprio e investigar nossa sexualidade lésbica. Com dezenove venho para São Paulo, fico agarrade pela cidade grande e seu preço de aluguel. Com vinte e três resolvo arriscar a vida e conhecer a cena musical da Capital. E aí me deparo com todas as pessoas que fazem parte da minha vida até hoje. Toquei e gravei com Anti-Corpos, montei a Post, um duo de post-rock, toquei com Sara Não Tem Nome, La Burca, Mieta e, atualmente, faço parte da In Venus e Migratórias.

No som que fazem, é evidente a cadência post-punk como suporte para uma série de outras camadas e entrelaces rítmicos. Isto chegou a ser conceitualmente discutido, ou foi como vocês naturalmente, intuitivamente, soaram ao iniciarem os primeiros ensaios?
Cint: No disco “Sintoma”, sim, isso foi discutido. Eu estava um pouco cansada de caminhar pelas mesmas referências de antes que nos levava a essa cadência post-punk que você cita na pergunta. São referências que eu ainda amo, mas não me que representavam mais, não era mais o que eu queria fazer. Fui insistente no começo com algumas sonoridades de como eu queria que, inicialmente, o sintetizador soasse, e isso foi reverberando para os outros instrumentos. O “Sintoma” é diferente do Ruína por uma série de apostas estéticas que fizemos. O “Ruína” tem muitas músicas cantadas em inglês, e depois de muita reflexão, entendi que queria me comunicar com o meu idioma materno. “Sintoma” é post-punk, mas tem reflexos de vários outros estilos que também nos apetece. Jiu também trouxe suas refs que eram diferentes das que ouvíamos, e eu acredito que isso enriqueceu muito a construção desse disco.

Patricia: Pois é, te digo que não foi fácil no começo extrapolar o que já fazíamos antes, pois claro que quando a gente começava a criar e tocar juntes, já seguíamos um caminho comum a nós enquanto banda. A entrada de Jiu com refs totalmente diferentes de batera, e a insistência da Cint para mergulharmos em outros caminhos na nossa música foram decisivas para a sonoridade que construímos em Sintoma, além da dedicação de todes em encontrar essas novas formas de tocar, cada ume em seu instrumento. Mas apesar dessa dificuldade inicial, esse lugar de desconforto não durou muito, e quando rolou a composição da primeira música de “Sintoma”, a “Ninguém se Importa”, tudo começou a fluir, e foi uma delícia construir esse disco, a delícia da novidade, de ir além do nosso próprio lugar comum.

Rodrigo: Nós já discutimos em alguns momentos sobre caminhos sonoros que tínhamos interesse em seguir e experimentar, mas acho que cada ume tem um universo tão grande de referências e vontade de compartilhar isso em conjunto, que sinto que uma ref se desdobra de maneiras distintas para cada ume de nós e depois a gente faz um trampo de juntar esses desdobramentos ou sentir qual é o caminho mais interessante para ser seguido.

Duda Jiu: A gente desejou soar dessa forma, foi complexo ali logo nos primeiros ensaios porque Cint, Ro e Vinhas já soavam de um jeito específico e característico da In Venus, mas eu era um corpo sonoro completamente diferente da banda e aí a gente resolveu pegar tudo o que tínhamos de melhor e irmos em busca desse outro corpo sonoro. Depois das duas primeiras músicas, posso dizer que o álbum foi bastante intuitivo. Porque a gente começou a pertencer rápido e feliz a essa massa sonora barulhenta e dançante que encontramos em nós.

Rodrigo: Ah, são amores de nossas vidas que a gente aprende todos os dias e em cada convivência que temos juntes. Pessoas que já estavam próximas e que de alguma forma já eram e são a In Venus também.

Duda Jiu: Além do que Cint e Ro falaram, a Formas é um movimento artístico que não está em detrimento da In Venus. Pensamos a Formas como artistes independentes que podem propor qualquer tipo de intervenção, exposição, show, apresentação, performance… enfim, são artistes que gostam de sonhar juntes, pensar meios políticos de ocupar os espaços e compartilhar conhecimentos. Nessa primeira ação, a Formas se reuniu para compor o todo do álbum “Sintoma”.

O clipe de “Ansiedade” traduz em imagens a ânsia de uma sociedade que precisa ser curada. Com isso, vocês querem dizer que o nosso modo de vida, de fato, implica no desenvolvimento de doenças somáticas e neuroses?
Cint: Tem uma outra parte do nosso manifesto que explica bem isso: “Estamos doentes. Precisamos de cura. Nunca antes na história moderna vivemos com tanta longevidade como nos dias atuais. A humanidade não vive mais em longos períodos de guerras oficiais, não agonizamos mais com vírus e bactérias sem que se encontre tratamentos rápidos. Mas não significa que nossa espécie esteja vivendo com qualidade. A prova é a crescente visibilidade de doenças psicológicas e psicossomáticas que refletem o desejo por poder e que conduzem um outro tipo de guerra fria, uma guerra silenciosa para a sociedade e completamente ruidosa para corpos políticos e periféricos. Um holocausto que não cessa, só atua com outra nomenclatura.

Você não está doente sozinhe.
Estamos todes doentes. Vivemos em um sistema que nos leva a exaustão física, intelectual, sentimental. Os sintomas parecem óbvios e a tomada de consciência é inevitável. É possível enxergar que, à longo prazo, os modelos atuais estão em constante ruína, dando espaço a novas construções. Olhar pra si visando a própria participação na sociedade é fundamental para se criar novas bases dentro de contextos maiores. Todo ser vivo é importante e tode ser humano é um potencial ponto de transmutação. A cura individual deve refletir na regeneração de grupos.”

Patricia: Acredito que o reflexo da sociedade em que vivemos — seus valores morais e dogmáticos, e seu estilo de vida destrutivo e competitivo, entre outras coisas — pode desencadear doenças somáticas e neuroses. Na verdade, vivemos numa sociedade neurótica. Por isso, tão importante quanto a autoanálise, é a análise social. Muitas vezes esses reflexos são inconscientes, e por isso apenas deslocamos para comportamentos que nos prejudicam e não necessariamente estão ligados ao que os motivou. Portanto, levar à luz da consciência o que nos afeta pode ser libertador, e a análise social deve acompanhar a análise psicobiofráfica, na minha opinião.

Rodrigo: Concordo muito com a Patricia e a Cint.

Duda Jiu: Sem dúvida nosso modo de vida implica no desenvolvimento de nossas doenças. Uma sociedade que enfrenta o acúmulo, que vive um desgoverno genocida, que propõe cargas horárias absurdas de trabalho, que propõe competitividade, que propõe morar verticalizado. Longe da terra, longe do afeto, longe do amor.

O clipe de Ansiedade retrata justamente essa prisão que nos é vendida como liberdade. Novos métodos de sentir menos os impactos de uma vida capitalista. Novos produtos para tratar de doenças que foram adquiridas advindas de uma vida longe do autoconhecimento.
Estamos enclausurades.

Patricia: Em 2019, a gente passou a maior parte do nosso tempo livre em estúdio, abraçando esse desafio de compor um álbum com a premissa sonora e política que nos propomos fazer. Havia um prazo final para gravar, por questões pessoais de alguns integrantes da banda, e isso foi bom, pois focamos muito, e gravamos pouco antes de se instaurar a quarentena e o isolamento social como conhecemos hoje. Passamos o ano de 2020, após a gravação, no processo de pós-produção do disco, e estamos lançando oficialmente agora.

Duda Jiu: Que louco pensar na pandemia e em como ela dividiu tantos trajetos. Ao mesmo tempo, numa sociedade imediatista, é incrível pensar que “Ansiedade” foi composta no final de 2019, gravada em 2020, e lançada em 2021. E deve se fazer atual por muito tempo. Infelizmente.

Além disso, iniciamos a gravação durante o carnaval de 2020 no estúdio Mestre Felino, semanas depois veio a pandemia e o isolamento, sentimos um certo alívio de termos gravado no momento certo. A captação foi feita magistralmente pela Helena Duarte. Também teve o processo durante a pandemia, no qual alguns arranjos precisaram ser repensados e que contamos com a ajuda de Mari Crestani, que produziu o disco e nos auxiliou na edição de muitas músicas, de Célia Regina, que captou algumas vozes para o arranjo da música Cores. E, claro, que não posso deixar de citar o incrível trabalho da Malka Julieta (que mixou o disco) e do Luis Tissot (que masterizou), que foram muito pacientes conosco nesse momento maluco que estamos vivendo, aceitando nossas sugestões para o trabalho.

Patricia: Como a Cint falou, a gente passou muito tempo juntes, e foi maravilhoso aprender a compartilhar e criar dessa forma. A gente comia muito bolinho de THC/CBD mesmo, e isso relaxava, acalmava, e turbinava nossa introspecção e criatividade. Uma história que foi desafiadora e acabou sendo engraçada foi a composição da música “Ansiedade”. A gente estava fazendo a música e Jiu inventou lá uma parte onde continha quatro partes/ritmos diferentes de bateria na mesma parte. Jiu tode contente falando, olha que louco, eu mudo disso para aquilo, e blá blá blá, e eu pensando, “Como vou conseguir compor em cima disso?”, se não conseguia nem decorar cada parte, pois mudava tão rápido de ritmo? [risos] Dei uma sofrida, e não estava conseguindo, aí falei, “Assim, não dá, escolhe um ritmo só e mantém!” [risos]. Para conseguir compor essa linha de baixo, pedi que Jiu tocasse devagar parte por parte por muito tempo, até eu conseguir encaixar algo, e no final é a linha de baixo que mais gostei que fiz na minha vida. Ou seja, quando algo se apresenta novo e desafiador, nossa tendência é fugir ou se defender, mas quando enfrentamos, podemos colher os frutos mais ricos da experiência. Lição que vou levar para a vida!

Rodrigo: Tem o pilão [risos]. Essa fita, eu não sei qual o motivo, mas sempre que a gente ensaiava, ou quando eu estava ouvindo as prés da música “Bordas”, dentro da minha cabeça ficava uma marcação meio maluca de claves. Aí, se eu não me engano, uns dias antes de partirmos para gravar eu compartilhei isso com Cint, Vinhas e Jiu, e todes acharam que seria legal experimentar. Acabou que eu não descolei as claves para levar para gravar e, colando lá no estúdio Mestre Felino, a gente começou a conversar sobre como experimentar essa ideia, e acho que Mari que falou sobre usar um pilão para fazer as partes das claves. A gente experimentou, achamos daora, e acabou ficando na gravação da música.

Duda Jiu: No meu kit de bateria, fiz questão de trazer a caixa que foi usada pela Camila Rules nas gravações anteriores da banda. Uso duas caixas no kit, o que propõe um efeito muito legal e uma sonoridade que remete ao trajeto da banda. Uso splash e cowbell para efeitos, o que completa o arsenal rítmico, que é característica dessa nova formação. E pessoalmente falando, quando iniciei os ensaios estava vivendo um momento estrambolicamente drástico na minha vida. Toda parceria de tantos encontros foi mais que um escape, foi fio condutor para que eu pudesse me recuperar emocionalmente.

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Originally published at https://elasticaoficial.com.br on April 1, 2021.

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Eduardo Ribeiro

Jornalista desde 2004. Comecei no Grupo Estado. Passei pela MTV, Agora São Paulo, R7, VICE e Metro. Escrevo para a Bravo!, Elástica, Estadão e Vista.