Pensar global e agir local — RevistaPB

Eduardo Ribeiro
9 min readOct 30, 2022

Saulo Barreto, do IPTI, fala sobre impacto de tecnologias sociais na redução da pobreza em comunidades vulneráveis

Foto: Divulgação

Formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Saulo Barretto se desviou da trilha acadêmica de professor para se dedicar à solução de problemas sociais comunitários. Neste sentido, ele continua atuando como um engenheiro, porém, com ideias voltadas a questões ligadas a qualidade da educação, saúde e geração de renda.

Com o objetivo definido, em 2003, Barreto participou da fundação, em São Paulo, do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI). Seis anos mais tarde, a sede do instituto foi transferida para Santa Luzia do Itanhy, um dos municípios com menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil — de 0,545, em escala de 0 a 1 -, no mesmo Estado de Sergipe onde Barreto nasceu, cresceu e se formou.

Ali começaria uma frutífera jornada de criação de tecnologias sociais desenvolvidas em parceria com as próprias comunidades. A proposta das iniciativas consiste em pensar alternativas para transformar a realidade de populações em situação de extrema pobreza e reaplicar as ações em outras localidades.

Barreto é mestre e doutor em Estruturas pela Universidade de São Paulo (USP), com passagens pela Universidade Técnica de Braunschweig (Alemanha) e pela Universidade Columbia (Estados Unidos). No IPTI, é pesquisador associado e responsável pelo relacionamento institucional da organização e pela área de Novos Negócios.

Em conversa com a PB, o engenheiro fala mais sobre o conceito e exemplifica como isso tem contribuído para promover o desenvolvimento de regiões vulneráveis.

Conte um pouco sobre a sua trajetória e como se interessou por estas questões.

Sou engenheiro civil, mas nunca tive afinidade, fiz porque gostava de Física. Depois, resolvi morar fora, e a melhor saída foi fazer mestrado, aí fui para a USP de São Carlos, no departamento de estruturas, trabalhar com métodos numéricos. Fiz uma dissertação e, depois, entrei no doutorado, porque ainda não tinha conseguido achar nada do meu interesse. Nisso, apareceu um convite para ser professor na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC-SP). Comecei a dar aula para alunos de Engenharia de Resistência de Materiais — e enfrentei um problema que me angustiava muito: não encontrava alunos para trabalhar na minha área de pesquisa, pelo fato de exigir muita matemática, e as taxas de reprovação eram altíssimas. Passei a repensar a minha carreira e a me preocupar em desenvolver soluções tecnológicas que ajudassem os alunos a aprender mais. Migrei toda a minha linha de pesquisa para trabalhar com plataformas de aprendizado. Foi quando percebi que era um empreendedor social. Aquilo me contagiava todos os dias. Era algo bem inovador para a época. Já decidido a sair da universidade, sem saber bem o que fazer, ganhamos um prêmio importante, do MEC, em Brasília, na área de Educação a Distância. Foi quando tive a ideia de criar o IPTI.

O que é tecnologia social e como surgiu este conceito?

O conceito nasceu em 2005, quando foi criada a RTS [Rede de Tecnologias Sociais]. Conheci o conceito em 2009, fiquei encantado de cara. Tecnologia social é uma solução inovadora para resolver um problema, criada em parceria com a comunidade que vive o problema, e que deve ser escalável e sustentável, especialmente na perspectiva da autogestão. Na nossa visão, tecnologia social claramente tem estes pressupostos. Ela tem de ser eficaz para resolver um problema social — e quando digo eficaz, quero dizer que é dentro do contexto da comunidade, não adianta querer trazer coisa de fora. Você pode trazer conhecimento, mas algo que requisite, o tempo todo, energia e recursos de fora não adianta. É preciso trabalhar com o que aquela comunidade possui a favor da solução. Nisso, a comunidade forma a equipe de pesquisa, não é alguém de fora que vai lá dizer o que deve ser feito, ela é parte da construção da solução.

Depois que a tecnologia está pronta e se mostra eficaz, precisa ser escalável e reaplicável, o que é diferente de replicável, que significa pegar uma coisa e introduzir em outro lugar igual. A reaplicação exige que você customize, porque cada comunidade tem as suas características. Por fim, essa tecnologia precisa ser sustentável no sentido mais amplo da palavra, não só ambientalmente, mas financeiramente, politicamente, na governança… Isso tudo sob uma perspectiva ideal de autogestão — não é mandatório, mas recomendável que a própria comunidade consiga gerir a tecnologia.

Poderia nos apresentar um panorama dos projetos do IPTI até aqui?

Em 2007, desenhamos o conceito do The Human Project: a ideia de um modelo global, ou seja, de um piloto — que, no caso, seria em Santa Luzia do Itanhy — de como podemos usar ciência e tecnologia em parceria com a sociedade para construir um programa que possibilite às pessoas dessa comunidade escaparem da armadilha da pobreza, um problema muito fatorial [na matemática, o fatorial de um número definido pela multiplicação de todos os seus antecessores até o número 1] e retroalimentável para o qual é preciso ter uma solução também fatorial e retroalimentável, sistêmico ou holístico, como queiram. E tudo isso tem de nascer da comunidade, então, o tempo em que cada solução é criada depende do tempo da comunidade. Focamos em três áreas: Educação Básica, Educação Empreendedora e Saúde, que, no fundo, estão associadas aos pilares do IDH [Índice de Desenvolvimento Humano]: educação, saúde e renda.

O que fazemos é olhar para essas três dimensões, com atenção voltada a crianças e adolescentes, procurando entender os principais fatores que contribuem para a armadilha da pobreza, como a baixa qualidade da alfabetização. Aí, construímos uma tecnologia social para enfrentar esse fator. No entanto, ao lidar com um problema, aparecem outros. A alfabetização não é só no período de 6 a 8 anos, e a qualidade não está só associada ao professor, que tem má formação, está desestimulado etc. A alfabetização tem a ver também com a educação infantil, com a relação entre família e educação e, principalmente, com a primeira infância. Logo, se esta parte não for resolvida, o problema nunca será solucionado, as consequências só serão mitigadas. Então, construímos o Synapse, voltado a um projeto de alfabetização e, logo depois, à educação infantil.

Como funciona o CRIA, que visa a promover condições adequadas da maternidade e da paternidade? É voltado especialmente à primeira infância?

O CRIA [Cultivate and Raise Infancy Awareness, “Cultivar e Aumentar a Conscientização da Infância”], na verdade, não é só voltado à primeira infância. Digo isso porque nossa visão da primeira infância começa muito antes da gravidez. Entendemos que a primeira infância está sujeita a violência de gênero e gravidez não planejada (principalmente na adolescência), e há a necessidade do empreendedorismo feminino, ou seja, de uma reversão da baixa renda à qual as mulheres se submetem, sendo que são elas que mantêm o lar funcionando, nem sempre podendo contar com os companheiros. E essa gestação precisa ser saudável, sem estresse, e aí estou falando de violências física, verbal, financeira. Tudo isso afeta, com comprovação científica, o desenvolvimento da criança, mesmo antes de a mulher ficar grávida. Já na gravidez, é mais grave ainda, porque se leva em conta a necessidade de uma boa alimentação. E quando a criança nasce, ela precisa do apoio adequado de pais, avós, de todo mundo em volta, para que se desenvolva de maneira plena, com segurança, amor, afeto, e se construa um futuro cidadão. Vamos trabalhar pelos próximos cinco anos com um consórcio de apoiadores que pactua conosco, sabendo que vamos cometer erros. Durante dois anos, vamos trabalhar somente em uma pequena comunidade-piloto; entre o terceiro e o quinto anos, tentaremos a escalabilidade para mais três comunidades em Santa Luzia do Itanhy.

Seria tolice da nossa parte pensar que um município em extrema pobreza, sem recursos próprios, possa manter um espaço CRIA em cada comunidade. Santa Luzia, por exemplo, tem 14, algumas delas muito pequenas. É literalmente impossível, para o gestor público, manter esta quantidade de unidades de desenvolvimento infantil funcionando quando mal é capaz de manter uma creche. Por isso, temos de trabalhar olhando para a realidade, e não para o ideal. O projeto, na minha opinião, é, de longe, o maior desafio que já enfrentamos na vida, e certamente depois dele não virá nada parecido. Agora, depois de 12 anos em Santa Luzia, nos sentimos prontos para enfrentar este enorme desafio.

Gostaria que falasse com mais profundidade a respeito do Synapse, de ensino de Português e Matemática em escolas públicas.

O Synapse talvez seja o melhor caso de tecnologia social. Demorou seis anos para ser construída a primeira versão, que começou em 2010, e é uma associação entre o conhecimento das neurociências, de colegas amigos da Unicamp que trabalhavam com isso há muito anos — estudando como o cérebro das crianças processa cognitivamente questões de matemática e linguagem -, com o conhecimento de professoras de escolas públicas de Santa Luzia do Itanhy, que conhecem a realidade como ninguém e lidam com as condições mais adversas possíveis. Tem algo muito especial na tecnologia social, que é somar estes dois mundos. Esta construção de confiança, para que a pessoa da comunidade se sinta no mesmo patamar do pesquisador, do especialista externo, é o primeiro desafio: enquanto ela não se sentir no mesmo patamar, entendendo que possui um conhecimento especial, não conseguimos instalar um processo de tecnologia social.

A partir daí, começamos de fato a construir, com apenas quatro professoras, a Synapse, em que elas, aos poucos, foram desenvolvendo a metodologia de como fariam para ensinar, dentro de suas condições, mas obedecendo aos princípios que a neurociência trazia. Em 2016, após chegarmos a um primeiro grau de eficácia, iniciamos o teste de escalabilidade, e aquelas quatro que começaram conosco viraram multiplicadoras. São dois anos de formação com um encontro mensal — e, aí, a cada novo município, vamos identificando e convidando professores e professoras, a maior parte mulheres, com perfil de multiplicadores, para participar. Atualmente, o Synapse já envolve mil professores e 20 mil alunos, todo ano. Já estamos em 27 municípios de quatro Estados brasileiros; e com o match funding do BNDES, que acabamos de assinar, vamos levar a tecnologia a 58 municípios e 2,5 mil professores. Em 2019, lançamos a Rede de Professores Synapse (RPS), uma iniciativa empreendedora para assegurar a continuidade das políticas públicas.

“O que fazemos é olhar para estas três dimensões [educação, saúde e renda], com atenção voltada a crianças e adolescentes, procurando entender os principais fatores que contribuem para a armadilha da pobreza, como a baixa qualidade da alfabetização.”

Vocês também atuam na frente de empreendedorismo com o projeto Arte Naturalista, de formação de talentos em técnicas de ilustração. Como tem sido o trabalho?

O Arte Naturalista é focado na educação empreendedora. No caso, estamos olhando para negócios com fins lucrativos, a parte da sustentabilidade. Começamos selecionando 20 adolescentes, em meio a 100 candidatos, com idade entre 11 e 14 anos, que gostavam de desenhar. Para os escolhidos, fornecemos a melhor matéria-prima do mundo, os melhores papéis, pincéis, tinta, tudo importado e de altíssima qualidade. Além disso, trouxemos o melhor professor do Brasil, Marco Namura, que vinha de São Paulo todo mês e dava um fim de semana de aulas, sempre representando a estética do manguezal, porque é o principal ecossistema de Santa Luzia, é o que dá a identidade do município. A região é conhecida fundamentalmente pela pesca do aratu e do sururu, dois crustáceos típicos do mangue, as principais fontes de renda da maior parte das famílias dos alunos selecionados. O projeto teve esse foco, porque, na nossa visão, para qualquer negócio ganhar um apelo global é preciso ter identidade local, do contrário, é simplesmente mais um. Trabalhamos muito forte os aspectos de ética, para as pessoas aprenderem a ter uma percepção coletiva e não individual, como é padrão no Brasil, porque, sem isso, não mudaremos nunca o País. Olhar para as pessoas de sua comunidade como parceiras, gente que você precisa ajudar para ser também ajudado. Não é uma questão de caridade, mas de competitividade, ser solidário aos demais e ajudar a formar cada vez mais gente.

Dos 20 alunos que começaram, apenas dez concluíram. No entanto, até 2019, antes da pandemia, já tínhamos dado aulas para mais de 1,8 mil alunos a partir destes dez. Em certo momento, os desenhos destes meninos começaram a ganhar visibilidade. O setor da moda nos procurou; foi quando surgiu a primeira parceria, com a marca Morena Rosa, e aí nasceu a empresa Casa do Cacete, que é deles, trabalha com design e moda sempre usando a estética do manguezal, já com duas coleções. Há outras parcerias com marcas como a Osklen e a Zetta Shoes, é uma marca global.

Originally published at https://revistapb.com.br.

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Eduardo Ribeiro

Editor @ Estadão Publishing House. Jornalista desde 2004, comecei no Grupo Estado. Passei pela MTV, Agora São Paulo, R7, VICE e Metro.